sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A velha sentada

A velha que está
Sentada, à cancela,
Acena a quem passa,
Sem tempo, por ela.

Homens e mulheres
Vão c'um grão na asa
De casa p'ra faina,
Da faina p'ra casa.

Da terra, o pão,
Ceifam com suor.
Tiram alimento
Do árduo labor.

A velha sentada
Que os vê passar
Também já foi uma
Mó a trabalhar.

Porém a idade
Levou-lhe vigor
E agora, à cancela,
Descansa ao calor.

A velha que está
Sentada à cancela
Por ela todos passam
Ninguém dá por ela.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Reduzindo o sentimento a uma equação

Vou reduzir o sentimento a uma equação.
Oh não!
Encrenquei numa divisão por zero.
Quiçá seja falta de esmero
Ou talvez falta de tempero.
Já mais não quero
Cair nesta tentação.
Vou-o deixar como está, o sentimento,
Como o vento.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Como o teu olhar

Olhei para o céu,
Vi o sol a brilhar
Quase tão brilhante
Como o teu olhar.

Olhei duma duna
O sereno mar
Imenso e azul
Como o teu olhar.

Olhei para as árvores
Ao vento a bailar.
Tinham tanta graça
Como o teu olhar.

Olhei os verdes campos,
A erva a grassar
E as flores eram lindas
Como o teu olhar.

Olhei o meigo gado
O pasto a pastar
Tão manso e tão calmo
Como o teu olhar.

Olhei na seara
O trigo a ondular,
Era um manto d'oiro
Como o teu olhar.

Olhei os maduros
Frutos do pomar.
Eram tantas cores
Como o teu olhar.

Olhei os passarinhos
Em coro a piar.
Bela era a harmonia
Como o teu olhar.

Olhei grandes peixes
Na água a nadar.
Traziam frescura
Como o teu olhar.

Olhei a brancura
Da neve, ao luar,
Tão alva, tão pura
Como o teu olhar.

Olhei a cidade
Com gente a passar.
S'enchia de vida
Como o teu olhar.

Olhei os monumentos
A história a contar.
São mestres dos tempos
Como o teu olhar.

Olhei as usinas
Sempre a fabricar,
Teimosas meninas
Como o teu olhar.

Olhei preciosas
Pedras de encantar.
Tinham tanto encanto
Como o teu olhar.

Olhei uma criança
Na rua a brincar
Cheia de esperança
Como o teu olhar.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Febre

Tenho na cabeça gravilha
Numa zoeira de ensurdecer.
Como um mafarrico que estrilha
E então me faz endoidecer.


Longas lanças o cerebelo
M'alanceiam com furor.
Na testa, um pano com gelo
Me abafa este grão calor.


Vem vertigem, vem tontura,
Também vem loucos delírios
E enquanto não vem a cura
Não mais vão os meus martírios.

domingo, 22 de maio de 2011

Se sou sábio sei

Prega o mocho eloquente
Na praça, para toda a gente:

Se sou sábio, sei.
Se não sei, sábio não sou.
- Ignorante, talvez! - Direi
Se ignoro como vou.
Se sou sábio, a sabedoria
É fonte de inspiração.
Se o não sou, a maravilha
Nasceu-me no coração.

Se a verdade me abraça o peito
E sigo o caminho sem o ver,
Talvez torto siga direito,
Talvez saiba sem o saber
E sábio ser.
Não saberei se sei mas sinto
- Digo - e não minto -
Que sou feliz.

O burro, atónito, pergunta ao boi:
- Percebes o que ele diz?
Responde o boi: - já a cabeça me doi!

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Um palácio de iludir

Ter, o jus, a beleza
Dum manifesto de esplendor
É um palácio de iludir.
Porque a justiça maior,
Na natureza,
Está em esta não existir.

domingo, 15 de maio de 2011

A viagem

Sabia que lhe esperava uma grande viagem. Procurei perceber o que o impedia. Reparei que a jangada não bulia devido à baixa profundidade das águas perto da costa tão serenas que se era incapaz de distinguir as ondas. Quando me abeirei da jangada, descobri que se encalhara em cima duma letra S deslocada da palavra BRUXELAS, porventura escrita numa outra língua. Empurrei-a para a frente, caindo em terra seca. Disse-me ele que o mar tinha recuado. Corri ao longo da praia e arremessei-a para o mar. A jangada era uma palete de madeira frequentemente usada no transporte de mercadorias. O mar bravo puxava-a para si, enquanto as ondas a devolviam violentamente à costa. A viagem não era apenas para a jangada e, por isso, ele resgatou-a. Compreendi, então, o meu erro.

sábado, 14 de maio de 2011

Desamparada

Estrias na face marcadas
Por duras lágrimas a escorrer
De tristes vistas lavadas
Pelo pranto ao anoitecer
São cantos, são hino
Às injúrias da vida.
Na capela, toca o sino
Deixando só a quem, o destino
Irá deixar esquecida.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Igrejas e relógios

Subo as imensas escadas que dão ao topo da montanha. Levo algumas horas a lá chegar. As escadas continuam no interior da igreja intervaladas por grandes patamares ladeados por outras igrejas. Eram miríades de igrejas dentro de uma igreja. E essas igrejas são relógios. São relógios do tamanho de grandes igrejas até se perder a vista.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Ser livre

É sentir-se igual em ser diferente,
Aceitar diferenças, sua ciência,
É ter força de quem, clemente,
Encontra abrigo na clemência.

É estar em casa em terra alheia
E correr mundo sempre em casa
É ir mais longe somente em ideia,
Voar tão alto sem ando ou asa.

É, da contenda sentir repulsa,
Adversar a guerra vivendo em paz,
Amar a vida que bate e pulsa.

É, sendo tão fraco, ser o mais forte,
Não temer o tempo, o que ele traz
E com um sorriso, olhar a morte.

domingo, 1 de maio de 2011

Nunca mais colhi flores

Nunca mais colhi flores.
Quando colho uma flor,
Ela passa a ser só minha
E acaba por murchar.
Se não a colher,
Ela será de quem a quiser
E viça.
Pode vir alguém e colhê-la para si.
A flor passa a ser dele
Mas murcha,
Deixa de ser de ninguém
E continuar viçosa.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O escolhido

Escorria-lhe o suor da fronte,
Lábios pelo sol gretados,
Olhos postos no horizonte,
Os dedos dos pés cortados
 
Levava ao colo um menino,
Inocente e pequenino
Nas areias do deserto.
Para onde ia, ao certo,
 
Era incógnita do destino.
Às garras do mal fugia,
Se esquivava à tirania
D'alguém déspota e bardino.
 
Seguia-o, como um cortejo
Bélico, uma multidão
Àquele cuja traição
Iria beber dum beijo.
 
O homem que o levava,
Levava-o, longe da guerra,
O menino que julgava
Um dia salvar a Terra.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Candeeiro da esquina

Candeeiro da esquina
Que alumias o caminho,
Alumia-me este escuro
Onde me encontro sozinho.

Candeeiro da esquina
Que alumias a calçada,
Alumia-me este escuro
Pois assim não vejo nada.

Candeeiro da esquina
Que alumias velha quelha,
Alumia-me este escuro
C'oa luz da tua centelha.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Cortesia de rua

Bom dia, dona Maria,
Como tem, moça, pastado?
Como há pasto em demasia,
Muito bem, muito obrigado!

Boa tarde, dão Duarte,
Como tem, senhor, pastado?
Como há pasto em toda a parte,
Muito bem, muito obrigado!

Boa noite, dona Maria,
Como tem, moça, pastado?
Incauta, quase comia
Pasto ruim: seco e estragado!

sábado, 12 de março de 2011

Sonhando com o mesmo amor

Porque ainda mais se cansam
Os teus cansados olhos de chorar?
Porque o meu coração tanto ama
A quem já não posso amar.
Como te assola tão vil demónio,
Essa dor que fere e punge a alma?
S'amarrou meu amor
Com laços de matrimónio.
Só a morte me trará calma.
Porque não segues adiante,
Procuras um amor diferente
E deixas a dor no passado?
Porque o sofrimento é constante
De quem está sempre presente
Mesmo quando ausentado.
Porque ao teu frio leito
Não o aquece um outro alguém?
Porque lugar no meu peito
Não sobra para mais ninguém.

Tomei o café e saí
Pois a hora girava a mó.
Desde então, não mais a vi.

Levava-lhe a idade o verdor
Para acabar só,
Sonhando com o mesmo amor.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Razão do meu desejo

Num dia quente de sol e fragrância amena
S'encantou meu coração num mero olhar.
Corada de arrebol e distinta pele morena,
Fina flor de açucena do meu sonhar.

No meu peito, amigo, se inflamou,
Do seu sorriso d'alma airosa e ladina,
Dos seus jeitos e trejeitos de menina,
O amor perdido que, então, se encontrou.

E ora, olhando o céu, rente à noitinha,
Espreitam estrelas cuja paz almejo,
M'apoquenta a guerra, inquietação minha,

Como o mar quando se agita ao vento frio.
Sou folha seca atirada ao desvario.
Sabes... Ela é o mundo e a razão do meu desejo.